domingo, 6 de outubro de 2024

AS PRINCIPAIS VERTENTES TRADICIONAIS DA PSICANÁLISE: ORIGENS E CARACTERÍSTICAS

 


Introdução

A divisão da psicanálise em três vertentes tradicionais — Viena, Estados Unidos e França — refere-se a uma abordagem que analisa como a teoria e a prática psicanalítica se desenvolveram em diferentes contextos culturais e históricos, a partir das ideias freudianas, e como elas evoluíram de maneiras distintas.

As três tradições refletem adaptações do pensamento psicanalítico às características culturais, intelectuais e sociais dos locais onde se desenvolveram, gerando interpretações e métodos variados.

1. A Psicanálise de Viena

A vertente de Viena está associada diretamente a Sigmund Freud, o fundador da psicanálise.

Esta tradição é a forma original da psicanálise, desenvolvida no final do século XIX e início do século XX em Viena, Áustria, onde Freud conduzia suas práticas clínicas e elaborava suas teorias sobre o inconsciente, a sexualidade infantil, a transferência, o complexo de Édipo, entre outros conceitos fundamentais.

Principais características:

Foco no inconsciente e na sexualidade: 

Freud propôs que o inconsciente é o centro dos conflitos psíquicos, e que a repressão de impulsos sexuais e agressivos, especialmente relacionados à infância, seria a origem dos sintomas neuróticos.

Método da associação livre:

Para acessar o inconsciente, Freud desenvolveu o método da associação livre, onde o paciente é incentivado a falar livremente, sem censura, permitindo que os conteúdos inconscientes emergissem.

Complexo de Édipo:

Freud desenvolveu a ideia de que as relações com os pais na infância, especialmente o desejo inconsciente do filho pelo pai do sexo oposto e a rivalidade com o pai do mesmo sexo, são fundamentais na estruturação da personalidade.

Desenvolvimento das fases psicossexuais:

Freud também propôs que o desenvolvimento da psique infantil passa por fases distintas (oral, anal, fálica, latência e genital), cada uma marcada por desafios e fixações específicas.

O Círculo de Viena, que incluía psicanalistas como Alfred Adler e Carl Jung, teve um papel importante na difusão inicial da psicanálise.

Embora Freud e esses colegas eventualmente tenham divergido em suas visões, o núcleo das ideias freudianas continuou influente e se expandiu para outros países.

2. A Psicanálise dos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, a psicanálise foi introduzida por psicanalistas europeus exilados, principalmente durante o período da Segunda Guerra Mundial.

A tradição americana é amplamente marcada por uma maior integração da psicanálise com a psicologia acadêmica e a prática psiquiátrica. Ela também se caracteriza por um movimento de adaptação cultural da teoria freudiana às necessidades e valores da sociedade americana.

Principais características:

Psicanálise ego-psicológica:

A vertente americana da psicanálise é fortemente influenciada pela psicologia do ego, desenvolvida por teóricos como Anna Freud, Heinz Hartmann e Erik Erikson.

O foco dessa abordagem está no fortalecimento do ego e no papel adaptativo da mente, ao invés de se concentrar apenas nos conflitos inconscientes.

O ego é visto como uma parte mediadora entre as pulsões inconscientes e as demandas do mundo externo.

Adaptação e pragmatismo: 

A psicanálise nos Estados Unidos desenvolveu uma perspectiva mais pragmática, preocupando-se com o ajustamento do indivíduo à sociedade.

Enquanto a tradição vienense enfatizava os conflitos internos e as fantasias inconscientes, os psicanalistas americanos colocaram maior ênfase na capacidade de adaptação do indivíduo ao ambiente social e às suas funções de ego.

Popularização da terapia psicanalítica:

Nos Estados Unidos, a psicanálise tornou-se uma prática terapêutica mais acessível e difundida, especialmente entre a classe média, e foi integrada à prática psiquiátrica. 

A popularidade da psicanálise em Hollywood e na cultura pop, com a representação de cenas de terapia, também contribuiu para essa difusão.

Psicanálise de curta duração:

Outra característica da psicanálise nos Estados Unidos foi o desenvolvimento de versões mais curtas e focadas da terapia psicanalítica, com o objetivo de torná-la mais eficiente e menos custosa para o paciente.

3. A Psicanálise da França

A tradição francesa da psicanálise é marcada por um retorno mais radical às ideias freudianas, mas também pela incorporação de elementos da filosofia, linguística e teoria estruturalista. 

A figura central desta vertente é Jacques Lacan, um dos psicanalistas mais influentes da França, que revitalizou a psicanálise com uma reinterpretação das ideias de Freud.

Principais características:

Lacan e o retorno a Freud: 

Jacques Lacan promoveu um movimento que ele denominou de “retorno a Freud”.

Ele criticava a diluição da psicanálise que via acontecendo nos Estados Unidos e em outros lugares, e propunha um retorno ao estudo detalhado das obras freudianas, especialmente no que diz respeito ao inconsciente como estruturado pela linguagem.

O inconsciente é estruturado como uma linguagem: 

Uma das principais inovações de Lacan foi sua tese de que o inconsciente funciona de maneira semelhante à linguagem, ou seja, está organizado de forma simbólica.

Lacan integrou teorias da linguística, especialmente o trabalho de Ferdinand de Saussure, em sua psicanálise.

Três registros: Real, Simbólico e Imaginário:

Lacan desenvolveu a noção de que a experiência psíquica humana pode ser compreendida em três registros: o Real (o que não pode ser simbolizado ou compreendido), o Simbólico (a estrutura da linguagem e da cultura), e o Imaginário (as imagens e identidades que formamos).

Sessões breves e o tempo lógico:

Outra marca da psicanálise lacaniana é a introdução da sessão breve.

Ao contrário da psicanálise tradicional, onde as sessões têm duração fixa, Lacan defendia que o tempo da sessão deveria ser determinado pelo momento em que um insight ou um ponto crítico é atingido, encerrando a sessão abruptamente.

Teoria do sujeito dividido:

A psicanálise francesa lacaniana também enfatiza a ideia do sujeito como fundamentalmente dividido, ou seja, sempre alienado de si mesmo devido à natureza do inconsciente e da linguagem.

Conclusão

Essas três vertentes — Viena, Estados Unidos e França — oferecem uma perspectiva rica e diversa sobre a psicanálise.

Enquanto a tradição vienense permanece fiel às formulações originais de Freud, a tradição americana adapta a psicanálise às preocupações do ego e da adaptação social, e a tradição francesa, particularmente sob Lacan, reinterpreta Freud à luz da filosofia e da linguística.

Cada uma dessas correntes tem suas próprias particularidades teóricas e clínicas, contribuindo para a diversidade da psicanálise enquanto campo de estudo e prática terapêutica.

FONTES BIBLIOGRÁFICAS

1.     FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

2.     FREUD, Sigmund. O ego e o id. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

3.     HARTMANN, Heinz. Essays on Ego Psychology. New York: International Universities Press, 1964.

4.     ERIKSON, Erik H. Childhood and Society. New York: W.W. Norton, 1950.

5.     LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

6.     LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

7.    APAPORT, David. Organization and Pathology of Thought. New York: Columbia University Press, 1951.

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