Introdução
A divisão da psicanálise em três vertentes tradicionais —
Viena, Estados Unidos e França — refere-se a uma abordagem que analisa como a
teoria e a prática psicanalítica se desenvolveram em diferentes contextos
culturais e históricos, a partir das ideias freudianas, e como elas evoluíram
de maneiras distintas.
As três tradições refletem adaptações do pensamento
psicanalítico às características culturais, intelectuais e sociais dos locais
onde se desenvolveram, gerando interpretações e métodos variados.
1. A Psicanálise de Viena
A vertente de Viena está associada diretamente a Sigmund
Freud, o fundador da psicanálise.
Esta tradição é a forma original da psicanálise, desenvolvida
no final do século XIX e início do século XX em Viena, Áustria, onde Freud
conduzia suas práticas clínicas e elaborava suas teorias sobre o inconsciente,
a sexualidade infantil, a transferência, o complexo de Édipo, entre outros
conceitos fundamentais.
Principais características:
Foco no inconsciente e na sexualidade:
Freud propôs que o
inconsciente é o centro dos conflitos psíquicos, e que a repressão de impulsos
sexuais e agressivos, especialmente relacionados à infância, seria a origem dos
sintomas neuróticos.
Método da associação livre:
Para acessar o inconsciente, Freud desenvolveu o método da
associação livre, onde o paciente é incentivado a falar livremente, sem
censura, permitindo que os conteúdos inconscientes emergissem.
Complexo de Édipo:
Freud desenvolveu a ideia de que as relações com os pais na
infância, especialmente o desejo inconsciente do filho pelo pai do sexo oposto
e a rivalidade com o pai do mesmo sexo, são fundamentais na estruturação da
personalidade.
Desenvolvimento das fases psicossexuais:
Freud também propôs que o desenvolvimento da psique infantil
passa por fases distintas (oral, anal, fálica, latência e genital), cada uma
marcada por desafios e fixações específicas.
O Círculo de Viena, que incluía psicanalistas como Alfred
Adler e Carl Jung, teve um papel importante na difusão inicial da psicanálise.
Embora Freud e esses colegas eventualmente tenham divergido
em suas visões, o núcleo das ideias freudianas continuou influente e se
expandiu para outros países.
2. A Psicanálise dos Estados Unidos
Nos Estados Unidos, a psicanálise foi introduzida por
psicanalistas europeus exilados, principalmente durante o período da Segunda
Guerra Mundial.
A tradição americana é amplamente marcada por uma maior
integração da psicanálise com a psicologia acadêmica e a prática psiquiátrica.
Ela também se caracteriza por um movimento de adaptação cultural da teoria
freudiana às necessidades e valores da sociedade americana.
Principais características:
Psicanálise ego-psicológica:
A vertente americana da psicanálise é fortemente influenciada
pela psicologia do ego, desenvolvida por teóricos como Anna Freud, Heinz
Hartmann e Erik Erikson.
O foco dessa abordagem está no fortalecimento do ego e no
papel adaptativo da mente, ao invés de se concentrar apenas nos conflitos
inconscientes.
O ego é visto como uma parte mediadora entre as pulsões
inconscientes e as demandas do mundo externo.
Adaptação e pragmatismo:
A psicanálise nos Estados Unidos
desenvolveu uma perspectiva mais pragmática, preocupando-se com o ajustamento
do indivíduo à sociedade.
Enquanto a tradição vienense enfatizava os conflitos internos
e as fantasias inconscientes, os psicanalistas americanos colocaram maior
ênfase na capacidade de adaptação do indivíduo ao ambiente social e às suas
funções de ego.
Popularização da terapia psicanalítica:
Nos Estados Unidos, a psicanálise tornou-se uma prática terapêutica mais acessível e difundida, especialmente entre a classe média, e foi integrada à prática psiquiátrica.
A popularidade da psicanálise em
Hollywood e na cultura pop, com a representação de cenas de terapia, também
contribuiu para essa difusão.
Psicanálise de curta duração:
Outra característica da psicanálise nos Estados Unidos foi o
desenvolvimento de versões mais curtas e focadas da terapia psicanalítica, com
o objetivo de torná-la mais eficiente e menos custosa para o paciente.
3. A Psicanálise da França
A tradição francesa da psicanálise é marcada por um retorno mais radical às ideias freudianas, mas também pela incorporação de elementos da filosofia, linguística e teoria estruturalista.
A figura central desta vertente
é Jacques Lacan, um dos psicanalistas mais influentes da França, que
revitalizou a psicanálise com uma reinterpretação das ideias de Freud.
Principais características:
Lacan e o retorno a Freud:
Jacques Lacan promoveu um
movimento que ele denominou de “retorno a Freud”.
Ele criticava a diluição da psicanálise que via acontecendo
nos Estados Unidos e em outros lugares, e propunha um retorno ao estudo
detalhado das obras freudianas, especialmente no que diz respeito ao
inconsciente como estruturado pela linguagem.
O inconsciente é estruturado como uma linguagem:
Uma das
principais inovações de Lacan foi sua tese de que o inconsciente funciona de
maneira semelhante à linguagem, ou seja, está organizado de forma simbólica.
Lacan integrou teorias da linguística, especialmente o
trabalho de Ferdinand de Saussure, em sua psicanálise.
Três registros: Real, Simbólico e Imaginário:
Lacan desenvolveu a noção de que a experiência psíquica
humana pode ser compreendida em três registros: o Real (o que não pode ser
simbolizado ou compreendido), o Simbólico (a estrutura da linguagem e da
cultura), e o Imaginário (as imagens e identidades que formamos).
Sessões breves e o tempo lógico:
Outra marca da psicanálise lacaniana é a introdução da sessão
breve.
Ao contrário da psicanálise tradicional, onde as sessões têm
duração fixa, Lacan defendia que o tempo da sessão deveria ser determinado pelo
momento em que um insight ou um ponto crítico é atingido, encerrando a sessão
abruptamente.
Teoria do sujeito dividido:
A psicanálise francesa lacaniana também enfatiza a ideia do
sujeito como fundamentalmente dividido, ou seja, sempre alienado de si mesmo
devido à natureza do inconsciente e da linguagem.
Conclusão
Essas três vertentes — Viena, Estados Unidos e França —
oferecem uma perspectiva rica e diversa sobre a psicanálise.
Enquanto a tradição vienense permanece fiel às formulações
originais de Freud, a tradição americana adapta a psicanálise às preocupações
do ego e da adaptação social, e a tradição francesa, particularmente sob Lacan,
reinterpreta Freud à luz da filosofia e da linguística.
Cada uma dessas correntes tem suas próprias particularidades
teóricas e clínicas, contribuindo para a diversidade da psicanálise enquanto
campo de estudo e prática terapêutica.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, Sigmund. A interpretação dos
sonhos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
3. HARTMANN, Heinz. Essays on Ego
Psychology. New York: International Universities Press, 1964.
4. ERIKSON, Erik H. Childhood and
Society. New York: W.W. Norton, 1950.
5. LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
6. LACAN, Jacques. O Seminário, Livro
11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Trad. Dulce Duque Estrada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
7. APAPORT, David. Organization and
Pathology of Thought. New York: Columbia University Press, 1951.
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